sexta-feira, julho 21, 2006

ontologia - poemas para acabar com tudo

não se diferem
antologia e onto-
logia, apenas há,
nestes, a descren-
ça: o que não pode ser
pensado.

segue uma ontologia:

CORONA

Da mão o outono me come sua folha: somos amigos.

Descascamos o tempo das nozes e o ensinamos a andar:
o tempo retorna à casca.
No espelho é domingo,

no sonho se dorme,
a boca não mente.
Meu olho desce ao sexo da amada:

olhamo-nos,
dizemo-nos o obscuro,
amamo-nos como ópio e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
como o mar no raio sangrento da lua.
Entrelaçados à janela, olham-nos da rua:

já é tempo de saber!
Tempo da pedra dispor-se a florescer,
de um coração palpitar pelo inquieto,
É tempo do tempo ser. É tempo.

Paul Celan


E ASSIM EM NÍNIVE

"Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba

Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.
"Veja! não cabe a mim

Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.
"Não é, Ruaana, que eu soe mais alto

Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho."

Ezra Pound


DE PROFUNDIS

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.

Há uma árvore marrom;ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer
Passando pela aldeia

A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.
Na volta

Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.
Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.

O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.
Na minha testa pisa metal frio

Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.
À noite encontrei-me num pântano,

Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.

Georg Trakl

DESTINO DO POETA

Palavras? Sim. De ar

e perdidas no ar.
Deixa que eu me perca entre palavras,
deixa que eu seja o ar entre esses lábios,
um sopro erramundo sem contornos,
breve aroma que no ar se desvanece.
Também a luz em si mesma se perde.

Octavio Paz


Abro as veias: irreprimível,

Irrecuperável, a vida vaza.
Ponham embaixo vasos e vasilhas!
Todas as vasilhas serão rasas,
Parcos os vasos.
Pelas bordas - à margem -

Para os veios negros da terra vazia,
Nutriz da vida, irrecuperável,
Irreprimível, vaza a poesia.

Marina Tsvetaeva

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