terça-feira, março 31, 2015

Os espúrios (desde a diminuição da maioridade penal)



Piero Eyben




Nota triste, forma triste. A declaração de constitucionalidade na discussão acerca da redução da maioridade penal definida hoje na Comissão da Câmara abre o caminho da barbárie e segue na contramão das exigências mais centrais e importantes que precisaríamos tomar na atual conjuntura político-policialesca do país. Desde o momento em que nos vimos fraturados na representação por mais direitos, é aí que a forma mais escabrosa de “política” mostrou-se e resolveu sair em busca de “seus direitos” (que no fundo representam a manutenção do exclusivismo de elites, classes e castas). O horror deste momento se iguala, em muito, ao que estamos tentando dizer da inércia dos intelectuais (ditos de esquerda) em propor discussões que estejam além dos velhos binarismos (corrupção/não-corrupção, PSDB/PT, golpe/manifestação, democracia/totalitarismo, massa/elite). Digo isso porque muitos desses representantes que poderiam, de fato, contribuir para o debate sobre MAIS DIREITOS, se abstêm para simplesmente fazer críticas ao modo de governabilidade que o PT tem implementado – o que precisa, é claro, ser criticado e duramente criticado, mas que perdemos força quando se trata, por exemplo, de unir movimentos sociais que são contrários à instalação do crime pelo Estado, como é o caso evidente dessa proposta da PEC 171/93.

O papel agora (talvez como nunca) do intelectual é unir-se aos manifestantes. Sermos uma massa contrária a subtração de direitos, que, evidentemente, só atingirá os ainda mais pobres, os negros, os sem assistência do Estado, em uma limpeza étnico-racial-e-de-classe. A proposta de desmilitarizar a Polícia Militar, parte crucial para uma vida possível, agora parece estar ainda mais longe, ainda mais assombrada pelo poder coercitivo e correcional que esses deputados pensam ter (e, pior, responder a) sobre população. Nossa discussão, que tem se rendido sempre ainda aos apelos da grande mídia, deveria talvez desviar-se para um outro nível, deixando de lado as implicações de fundo apenas eleitoreiro ou pior de uma rixa por territórios de poder acadêmico (como supreendentemente alguns apresentaram “argumentos” contrários à nomeação de Janine para o MEC). Perdemos e nos perdemos. Dizer convenientemente apenas sobre a Lava Jato – quando há a Zelotes, o HSBC. Dizer-se convenientemente contrário ao novo ministro por seu papel na CAPES ou por simplesmente pertencer a essa ou aquela universidade (ou forma do pensamento), é nos perder e deixar que percamos todo e qualquer embate por direitos democráticos.

Estamos, sem dúvida, em um espaço de crise representativa, em um espaço onde nossos corpos não mais aguentam os ideários da República re-formada após a Ditadura. A necessidade da Reforma Política é urgente, assim como é urgente a garantia de direito à vida (e o prosseguimento dela, sua sobrevivência, no sentido grave). Seguimos na dura dimensão da legalidade e do direito, de sua calculabilidade macabra, e esquecemos da justiça e do outro, ali diante de nós. Diante dessa aprovação pelos espúrios, toda e qualquer discussão torna-se ela também espúria, pois perdemos e continuaremos ainda a perder. Vale a dupla citação de Drummond: primeiro, talvez, precisemos de “entre as ruínas / outros homens surjam*, a face negra de pó e de pólvora” e, ainda mais, a constatação de que “Ganhei (perdi) meu dia. / E baixa a coisa fria / também chamada noite, e o frio ao frio / em bruma se entrelaça, num suspiro”.

Às ruas, ao congresso, talvez para ganharmos o dia, entre as ruínas de hoje, entre os espúrios que nos tornamos.


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* alterei o verbo para o texto. No original é “surgem”.
** foto Ike Bittencourt

domingo, março 15, 2015

o 13, o 15




Piero Eyben


Desde as eleições de 2014, estou ao lado de proposições progressistas, à esquerda, que representa o governo do Partido dos Trabalhadores. Nunca me furtei em me declarar explicitamente como favorável à recondução de Dilma ao Planalto, nem às críticas necessárias ao modelo que ela mesma implementou no começo ainda de seu primeiro mandato. Os mais próximos a mim sabem que até mais ou menos o mês de agosto/setembro do ano passado, estive em uma dimensão de crítica tremenda ao que Dilma fazia com o país sobretudo na permissibilidade do Estado de Exceção, no tocante ao poder militaresco, à forma com que, de modo um tanto irresponsável, tratou assuntos de direitos humanos, o esquecimento dos indígenas e da continuidade da reforma agrária no país. Tudo isso me angustiava muito e cheguei a dizer que não faria campanha à presidência, se fosse Dilma a concorrer. Quando começaram-se as especulações e o movimento da parcela mais reacionária da política brasileira, pensei não haver outra solução senão me engajar completamente na campanha da presidenta, o que se agravou imensamente com a morte do candidato que, por certo, confirmaria sem muitos esforços em um provável 2o turno a continuidade do projeto popular.
As eleições foram fortes em embates, em redes, em comícios, em reuniões, em manifestações e passeatas para tentarmos reafirmar a necessidade de continuidade de uma frente popular que, apesar de estar longe dos ideais comunistas (bolivarianos, como muitos querem crer), está muitíssimo preocupada com a distribuição de renda, com a ascensão de classes, com a justiça social, com o emprego. O governo Dilma representa um governo absolutamente moderado em termos de políticas de esquerda e, em largo espectro, parece-me muito com aquilo que hoje representa grande parte dos que lá estavam hoje. Para além, da questão histórica e canalha que existe na escolha da data de 15 de março, os dois números das últimas manifestações representam os partidos que estão no poder e que têm uma tendência complicada de engolir a se equipararem, a se identificarem. Talvez pelo tamanho desproporcional que tomaram, o 13 de Dilma e o 15 de Temer são, hoje, uma parcela que representa um problema que está, como bem disse Safatle, na falência da nova república, no fracasso do modelo de governabilidade.
Em Brasília, sempre estivemos em lados opostos, os 15 e os 13. Sempre. O PMDB e o PT eram até a penúltima eleição inimigos públicos. Azul e vermelho. Caprichoso e garantido. Custei muito a aceitar empunhar uma bandeira com o vice do PMDB, acreditando que isso nos levaria a uma situação como a que vemos hoje. Nessa luta, que em geral sempre saímos derrotados nas urnas, havia sempre uma forma que não se reduzia, um modo de operação que organizava o pensamento e a ação da militância para os momentos decisórios, para podermos com uma moral bastante diferente daquela dos que hoje foram às ruas mostrar que o caminho da inserção social era ainda o almejado. Bem, Brasília politicamente é uma grande farsa. Falo, evidentemente, de Brasília como parte da Federação e não como Capital da Nação. A farsa se monta com interesses muito espúrios e com um ideal de castas e classes como em nenhum lugar do mundo. Em sua divisão, Brasília é pensada como um acontecer para a sociedade que não suporta ver mazelas, pobreza. O Plano Piloto não é apenas uma ilha, é um poço. O medo da direita raivosa de Brasília tem a ver com esse poço, com o medo de serem invadidos pelos bolsões de pobreza que rodeiam o centro. O entorno do Distrito Federal é um dos lugares mais violentos do país, meio sem lei nem dono, entre Goiás e o DF não há jurisdição. A taxa de assassinatos ali é a segunda mais alta do país. Mas como disse, custei a erguer a bandeira porque acredito que as bandeiras que guiam o PT ainda são bandeiras poderosas e que podem transformar. O contrário ocorre com o PMDB, por seu caráter parcimonioso e sempre indigesto de “fazer política”, de envolver-se ali onde tudo o que é sujo está.
O Brasil de hoje tem muitos outros problemas para além daquilo que essa marcha pró-impeachment solicita. A derrubada da presidenta significa, agora mais claro do que nunca, apenas um revanchismo golpista que pretende destituir a moral de quem penosamente conseguiu minimamente distribuir renda, elevar a qualidade social, colocar no cenário questões fundamentais de direitos, reverter o poder de consumo diante do capitalismo internacional. A demanda por impedimento da presidenta vem dos lugares mais abscônditos da sociedade de classes brasileira, aquela que é por si escravocrata, imperialista, violenta e exclusivista. Vejam como tratam, por exemplo, os outros casos de corrupção, como o HSBC, Furnas, SABESP, Metrô paulista. É preciso um silêncio absurdo sobre eles ou a casa toda cai. Nossos problemas de segurança pública, com números de guerra, é, evidentemente, um problema muito maior. Nossa falta de ética cotidiana, nas relações de trabalho, no modo como lidamos com o outro, é, sem dúvida, parte de uma corrupção também silenciada e muito mais problemática do que Dilma nos representando ou não.
De duas semanas pra cá, tenho pensado em como nossa presidenta procurou (e mesmo atiçou) essas manifestações contra ela. Não serei enfadonho apontando o que todos os críticos do governo apontam. Muitas delas verdadeiras, outras nem tanto, mas a grande mídia já as informou, as redes sociais já as viralizaram. Para mim, há outros motivos, mais profundos e ideológicos, na demanda por seu impedimento. Ela simplesmente em um governo mexeu com estruturas que comandam o país há décadas e séculos. Passo a listar: (1) instituiu uma Comissão Nacional da Verdade para pesquisar, rever, avaliar e emitir parecer sobre os crimes cometidos por militares durante a Ditadura; (2) mandou trocar em documentos oficiais a famosa ideia de uma “revolução de 64” (“a gloriosa”) pela mais correta de Golpe Militar, isso tocando documentação do Poder Executivo Federal; (3) manteve políticas de distribuição de renda iniciadas por Lula, construindo assim uma continuidade efetiva entre ela e aquele governo, considerado até pela grande mídia como o melhor que já houve; (4) propõe o combate a corrupção de forma imparcial, dando liberdade de investigação à Polícia Federal, sem engavetamentos; (5) propõe uma reforma política (isso como solução primeira às demandas das manifestações de junho 2013, através de plebiscito e participação popular – o que, é preciso dizer, não foi ouvido por ninguém!); (6) começa a falar em regulação e democratização das mídias; (7) fala e propõe a taxação de grandes fortunas, para cumprir a Constituição Federal; (8) torna crime contra a mulher hediondo; (9) propõe punir e tipificar os crimes de homofobia; (10) distribui casas, fazendo cumprir o direito à moradia; (11) investe em educação técnica e superior – embora com esses cortes para o ano de 2015 – de modo sistemático e com vias a uma transformação de longo prazo em nosso potencial formador, acadêmico e de pesquisa técnico-científica; (12) decide que os royalties do pré-sal será todo investido em educação e saúde, e não será vendido às empresas privadas.
No fundo, com todas essas razões, podemos crer que o golpismo à brasileira é até mesmo brando. Quando se pensa em tanta transformação histórica e ideológica, as classes dominantes em geral ficam ainda mais raivosas, odientas mesmo. E, enquanto as mídias oligárquicas falam de maior manifestação já existente no país, só posso pensar, como o pensou Derrida sobre o “September 11” (que me vem a mente porque um dos cartazes do protesto de hoje dizia literalmente: “obrigado PT pelo 11 de setembro”), que por mais que esse seja um major event, ele só o é porque representa a injunção daquilo que significa a própria dominação. Empiricamente, numericamente, ele pode ser o maior evento da história de manifestações no país – com certeza o mais midiatizado, de WhatsApp a TV –, contudo ele é sobretudo construído para dar a “impressão” que de os afetos estão todos jogados ali, que é um sentimento global, que as retóricas estão em acordo e são comunicadas entre todos os cidadãos. O evento maior nunca poderia ser um conjunto de populares, é preciso estar bem e usar filtro na foto. Como diz Derrida, a impressão passa a ser a “própria coisa” para que ela se torne o acontecimento em si. Trata-se de dispositivos comunicativos apenas. Dizer, como faz o jornal, que essa manifestação é contra o governo, datá-la e colocar um endereço como “Av. Paulista, Brasil” (é essa a manchete dessa noite no site UOL), é, por certo, esquecer todos os trabalhadores que por ali passam e transitam, é dizer que a Paulista é o modo que devemos nos portar. Como contraponto a isso, ouço a Deputada Jandira Feghali (PCdoB) dizer do seu belo projeto de uma mídia democrática em que as programações precisam ser regionais, locais e independentes, para que possamos ver a cara do brasileiro, não o sotaque paulistano ou carioca.
Diremos a partir de hoje que o problema da inflação é de outra ordem. Trata-se da inflação de elementos acreditados (na crença e no crédito). Quanto mais hiberbólico, maior o acontecimento. O que não está na mira daqueles que hoje foram às manifestações é o grau de inapropriabilidade de tudo o que ali ocorre. Como em muitos casos essa foi a primeira manifestação que participaram em suas vidas, eles não sabem ainda como lidar com as inúmeras contingências que dali saem. Cartazes com teor golpista, nazistas, fóbicos, classistas, elitistas têm potencial destrutor sobre quaisquer reivindicações que porventura venham a fazer. Para que esse seja considerado um evento maior, é preciso pensar em como um acontecimento participa de algo que não podemos compreender, que excede a compreensão, que ocorre, como diz Derrida, “ali onde a apropriação fracassa sobre uma fronteira”. Em larga medida, é por isso que dizemos – nós, à esquerda – que a direita não pode fazer o que faz, que ela não tem moral para isso. A direita não pensa que suas interpretações podem fracassar, que seu mundo pode estar às avessas. Isso simplesmente porque, para eles, ele nunca esteve.
Sem horizonte, agora, o governo sai fortalecido. Essa é minha conclusão de cara. Suásticas funcionaram uma vez, em geral não podem funcionar novamente. No entanto, para que essa força e vitória seja positiva ao governo é preciso muito trabalho e, sobretudo, uma tomada de partido – a retomada do Partido dos Trabalhadores em seus moldes anteriores – mais à esquerda, com propostas populares. Se vivemos uma crise econômica mundial – embora os EUA cresçam assombrosamente (e esse é um dos motivos para a alta do dólar) – precisamos de uma presidenta que nos faça crer, como fez Lula, que não seremos devastados, que todas as conquistas sociais não serão destruídas por um surto do capital especulativo. Que Dilma, a Dilma em que votei e votaria novamente, faça de imediato a reforma política, a regulação da mídia, a distribuição maciça de renda, que force ainda mais os investimentos em educação e saúde, que o pré-sal não seja tocado por essa maquinação contra a Petrobras, que o combate à corrupção seja implacável (mesmo nas pequeninas, do cotidiano, de cada um), que se continue gerando emprego e renda.
Ao contrário do que será noticiado, esse será um major event, não para os golpistas, mas para o próprio governo que pode, agora, assumir as rédeas de seu governo, para além de governabilidades. Trata-se de um acontecer de sentido qualitativo que não permita simplesmente fazer a democracia atentar contra si mesma, mas em uma marcha do tempo em que o 13 possa ainda, diante do passado, manter aberto o porvir.

Brasília, 15 de março de 2015.