domingo, março 28, 2010

engendro: prometeu arabesco

      
τίς ἀχώ, τίς ὀδμὰ προσέπτα μ᾽ ἀφεγγής;

[que eco, que cheiro voa até mim, sombrio?]
(prometeu, via ésquilo)

asa e véu, o perfume escalando,
converte-te ao solo em tímpano –
de si o som de céu, conversa e
folha, deixada ainda, sob a cava
vaga de esporas, amanhecendo
como louça lúgubre, em leito –
ao soluço, retornam as palavras,
acolher crueldade.

uma só língua, entre arabesco
e cetim, o luto, o avesso – calando
a noz, o dentro-fronteira, tampon-
ando-se à queda, doce adeus –
em flor, de nada, esquecida:
a nau da demanda, esse corpo,
esse único de cicatriz, uma só vez,
de não-apenas, aqui.


à morada da boca, ardem fraga e
limo – relembras o tecido, de
olhos –; estranho e mudo, de foz
e força, pedra cega: grilhão e
abismos todos. mordem-te ululos,
tez e fogo, metal partido; fundição.
a voz, frágua de pele, aguarda,
suave.
                 

sexta-feira, março 26, 2010

Geheimschrift


da cera, passada, os rastros
habitam – fronte e morada –
esse corpo, delgado, de
folha a lâmina, estilo e gris.

assim, cal-
cada traço, desmente-se,
filame secreto, decifrado:
a escrita em si, refunda-se.

prodígio, os sulcos guardados,
um sesto ao inverso – re-
filtram as manchas, espargindo
mais sopros, anima.


ainda permanente, todo signo
perfaz-se ao baldio, nó de
estrada e via retalhada: sonho
fraco, alusão de morsas.

anamnese e atraso – imago
retraçada, sustida pelo lápis –
no envio da voz, calada de
letra, na asa da origem,

sempre re-
nascida em tempo-
arada, wenn er nachdenkt,
o só pedido, convertido

de mãe,
naquilo que a escrit-
urra da página, no livro, um
bloco de ar, celulose e ártemis –
cantando-se silentes, recifes
e pele – enquanto correm,
cortando-se quando, o reflexo
outro, de tropos.
                         

quarta-feira, março 24, 2010

alguns alhures na (in)tradução

   

une voix venue d'ailleurs (maurice blanchot)

uma voz vinda de alhures

uma voz vinda de longe

uma voz vinda aliás

uma via vinda de alhures

uma via vê nua aliás

uma voz vésper de alhures

uma vez vinda de todos eles

§ § §

aliás, uma voz, de alhures, vinda:
visão vesperal, toda a vênus, deixada.
nua, a forma, a via, de uma voz -
deles todos, de outro lugar, futuro.
             

mákhe: nome e o hágios

  
de toda marca, obscura
nódoa de brancos, a fonte
despe-se e conduz-te em
seixo e calhaus, de vereda
e vislumbre: mós, ao corpo;
pele aos pés, o pó do nome.
                                     

sábado, março 20, 2010

velas, tu

   
à margem da vela deixada,
a fazedora permanece, em si,
estanque rota. simplesmente.
o tempo, ausência de imagem,
coroa o pavio, a cera -
contradiz o lume, em
sombra-de-palavra -
em pingos e sangue derramado;
corpo, esse intruso, con-
dizendo-se ver, para fora, cirro,
o derrame, desvelo:
espaço escondido, nos
braços, carcomidos de
mudez.
                                              

máscara, de nietzsche

Wir haben die Kunst, damit wir nicht an der Wahrheit zugrunde gehen
[nós temos a arte, com isso não nos afunda a verdade]
Friedrich Nietzsche


esporas, deixando-se –
as formas de um som,
silente, de bodes –
macerada a marca,
insana, foz, de ti
rãs e bois, levados.

sólido pêlo, estanque
o ar, respiro último
de verdade e veemência –
o corpo roto, maculado
de gris, cavalo deitado,
raso olho, laceração –

e vontade, querência:
ramas e tecidos, enquanto
não definhas; o mais
querer – desse traço,
alvo-desnudado. falange,
sentença preclara, cal.

à fêmea, de olhar-te,
lê-se um só modo, ex-
perecimento, todo o
fruto – tâmaras – do dizer,
letra e cursos, mais-além,
soluço de vinho

e dança de tristan, ambos
calados, de outro
espaço e voz, alhures,
arrulho de água. sal de
olhos e óleo de santos;
convulsiva, acima,

a moral daquilo, de dizer.
espéculo – bayreuth lan-
çada, aos pés – e espólios.
a si, o tempo. tudo,
fome repentina e serpe
desdita o outro lado,
de nada.

quarta-feira, março 17, 2010

sobrescrita, voluta


falas, para longe de mim,
enquanto a mão, demora
interna, falseia o chão de
gris.

falas, em termo de asas,
vestindo-te agora, calada,
de nu e sombra, em palavra,
grão.

falas, aos gomos, épura,
tecendo sons, dormem os
olhos, de carnes e chifres,
grei.

falas, tomada de sol, claro,
das pernas, repouso, galhos,
e culpa de vento, o tempo,
grous.

falas, calma de ti, retida,
e ouves a descida lenta,
fio a fio de dia: sentencias,
gruindo.

terça-feira, março 16, 2010

a lume spento

or le bagna la pioggia e move il vento
di fuor dal regno, quasi lungo 'l verde,
dov' e' le trasmutò a lume spento.
*
[e o banha a chuva e o demove o vento
para além do reino, cercando as margens
do verde, onde o transladou a lume extinto.]

dante alighieri, purg. iii, vv. 130-133


coberta a cabeça, pré-
claras manhãs, o
medo, o sentido
se escorre,
calando-se, na
fala –
faunos e gárgulas,
monturo de moradas.
o dizer revê aquilo,
que em ti vive, má-
cula da palavra,
a voz repreendida, no
óbito, do
olvido:
órbitas daquilo
que se separa, tronco
e pescoço, vindo
ao pó de vestes,
paras. chiado –
ausência do manto –
mantém-se descendo
o calor do mais verbo,
a mor, pó dor. tudo,
enquanto decalcas
a sombra, o medo,
o nada. minguando-
se os fios, temendo.
a boca e o pincel,
o dedo nas mais
cordas – tão –
soluçando, ao
caminho, mais
tenso: espectro,
e aguardas. dei-
xando-me mais
a mais de tuas
rosas – só lustro –
spento – o corpo,
esfumaças da ponte,
rebentas, colhido.

ultimar a falar, traduzindo celan


Sprich auch du,
fala também tu,

sprich als letzter,
fala o extremo,

sag deinen Spruch.
diz tua sentença.

  
Sprich –
fala –

Doch scheide das Nein nicht vom Ja.
porém não corte o não do sim.

Gib deinem Spruch auch den Sinn:
dê a tua sentença também o senso:
gib ihm den Schatten.
dando-a à sombra.

Gib ihm Schatten genug,

dando-a sombra plena,
gib ihm so viel,

dando-a ao muito,
als du um dich verteilt weißt zwischen

quanto a ti tu sabes espalhá-la entre
Mittnacht und Mittag und Mittnacht.
meia-noite e meio-dia e meia-noite.

Blicke umher:

olhe ao redor:
sieh, wie's lebendig wird rings –

veja, como ao isso vivo tornam-se anéis –
Beim Tode! Lebendig!

em morte! vivo!
Wahr spricht, wer Schatten spricht.
verdade fala, quem sombra fala.
Nun aber schrumpft der Ort, wo du stehst:

contudo agora míngua o lugar, onde tu estavas:
Wohin jetzt, Schattenentblößter, wohin?

para onde agora, o dessombrado, para onde?
Steige. Taste empor.
escala. tateando empós.
Dünner wirst du, unkenntlicher, feiner!

escasso tu te tornaste, indecifrável, estreito!
Feiner: ein Faden,

estreito: um fio,

an dem er herabwill, der Stern:

à ela desejo-desce, a estrela:
um unten zu schwimmen, unten,

para abaixo flutuar, abaixo,
wo er sich schimmern
ali ela retém o cintilar
sieht: in der Dünung

de si: no vagaroso da onda
wandernder Worte.
sempre viandante de palavras.



paul celan
piero eyben