segunda-feira, fevereiro 09, 2015

Dilma, a democracia e o Estado: alguns silêncios





Piero Eyben

Nos últimos dias, aliás, desde as eleições presidenciais que tivemos no ano passado, reina entre os brasileiros midiatizados a sensação, colocada pelos “honestíssimos” jornalistas da Folha de SP, da Globo, da Editora Abril, do UOL, do PSDB e por aí vai, a onda desesperada para a retirada da Presidente da República e a cobrança sobre seus eleitores de uma postura (contrária, sempre) diante de escândalos igualmente midiatizados e bombasticamente preparados. As acusações são de todo nível. As cobranças ainda piores. Até o momento, no entanto, nada que atinja a presidenta nada que atinja o processo eleitoral nada que atinja a escolha da maioria dos brasileiros que votaram na realidade transformada do país. O nível dessa transformação pode e deve ser questionado, claro. Aliás, é de fundamental importância questioná-lo uma vez que a desigualdade ainda permanece, o anseio por mais e novos direitos nunca foram tão urgentes, ainda há fome e miséria no país, o índice “governabilidade” ainda é uma prática desastrosa no seio do governo (vide Kátia Abreu, Joaquim Levy, George Hilton, e ainda, a derrota na Câmara dos Deputados para um PMDB cada vez mais retrógado, dos mais obscuros recônditos da política suja e preconceituosa, personificado pelo agora Presidente da Casa). O índice de transformação também deve ser pensado de modo positivo dado o avanço em diferentes áreas em que as políticas sociais puderam fazer diferença, com todos os programas de Assistência Social e Distribuição de Renda, na geração de Empregos (que, aliás, é um dos índices aporéticos do Governo que tem a menor taxa de desemprego da história e ainda sim é apontado como em estado tendente à recessão, com a necessidade de medidas impopulares e cortes criados por essa tal governabilidade que tanto maltratada a ideologia de formação de um Estado com necessidades evidentes), na consolidação dos processos educacionais (que ainda não atingiram os números esperados, mas que o nível de investimento auxiliou nesses 12 anos uma transformação em curso, na formação docente, na distribuição de vagas nas Instituições de Ensino Federais, na procura por diversidade sócio-étnico-racial para uma esperada reviravolta nos saberes praticados por aqui).

Até hoje estive, como muitos eleitores de Dilma, em silêncio não porque tenha me arrependido ou me envergonhado de meu voto, como querem muitos. Estive calado por dois motivos: (1) não tenho tempo MESMO para essas picuinhas criadas por factoides de jornalecos ou de “políticos” apolíticos; (2) deixar que o barco siga o seu curso na história. Bem, penso que a hora não permite mais simplesmente se manter calado. O silêncio guarda aquilo que é a própria democracia – naquilo inclusive que ela tem de mais doentio: sua autodestruição. O direito democrático é um direito literário, como dizia Derrida, de tudo dizer e de nada dizer. Ali onde a possibilidade de calar-se é ainda uma possibilidade é que se instala o perigo do silêncio, do silenciamento, da opressão, da calúnia também. O poder democrático é um poder SEM, um poder negativo em que a não-restrição ao dizer implica a possibilidade de tudo dizer, inclusive o apoio ao que não é democrático, inclusive apontar para uma não-democracia, para o não reconhecimento da democracia. Como diz ainda Derrida, a democracia como tal simplesmente é impossível, ela está sempre por vir. O que temos aí é uma espécie de “democracia calculada”, de um espectro democrático que, no entanto, politiza pouco e emburrece muito. Temos aí uma democracia do direito, uma democracia de soberania e de poder que, no fundo, é sempre anti-democrática, autoritária e que, como diz Walter Benjamin, representa apenas uma “degenerescência do direito, da violência, da autoridade e do poder do direito”.  Não posso me privar de frequentar o impossível da democracia, naquilo que ela tem de porvir, naquilo que ela manifesta enquanto reenvio infinito à ideia de liberdade, aos princípios de uma tomada de decisão na tentativa não violenta diante do outro – de todo e qualquer outro.

O princípio regulador do Estado democrático tem na voz do povo, instituída por meio de eleições, no princípio representativo, portanto, sua força. Dupla força: de um lado, a força do povo contra os abusos do estado, da soberania, das classes; de outro, a força contrária, coercitiva, maledicente, imposta na razão do mais forte, nas simbologias dos opressores. Dupla violência, duplo direito. O sistema representativo mostra-se sempre limitado e limitador, sempre ao lado de interesses imediatos e mediados por formas espúrias daquilo que se costumou erroneamente chamar de política. Essa mediação nos é dada pelas fontes de “saber” de massa, que exercem real poder violento de Estado, da forma que sirva aos modos legados por grandes corporações, por 2 ou 3 % da população que controla o dinheiro. Essa regulação do sentido do Estado é extremamente perigosa e perversa, uma vez que, sob o pretexto de informar, vendem produtos. E o produto à venda no momento – ao menos para aqueles que citei mais acima – é a Petrobras. Importam pouco os dados e os vestígios que encontrará a Polícia Federal, a imprensa já deu sua sentença, que será repetida por cada casa, nos corredores dos supermercados, nos elevadores, nas conversas das “boas famílias brasileiras”. Não interessa que a lista de políticos que receberam propina ou se enriqueceram seja majoritariamente de partidos da OPOSIÇÃO ao Governo. Não interessa que o modo de operação ridículo da petroleira tenha começado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Haverá sempre um diretor de “cinema” para ser contratado e realizar uma minissérie – com um excelente texto, diga-se de passagem – para simplesmente associar as formas de governo atuais com a de um sociopata ficcional ou com os costumes da “família” sendo degradados por relações que são consideradas demoníacas, assombrosas e dignas de punição moral. Eh, que o século XIX ainda nem passou por aqui! Tudo isso sob a égide da autoridade absoluta do direito democrático de tudo dizer, de tudo poder dizer, sem responsabilização.

Desde as eleições, venho defendendo que as formas de justiça social não deveriam mais se basear no ideal de igualdade. Esse é um conceito fraco, inócuo e ingênuo para dizer de uma real subversão que seria necessária para responder às demandas contemporâneas, às trevas do contemporâneo. A guinada mais à esquerda que o Partido dos Trabalhadores precisaria fazer talvez não consiga realizar. Virar-se ainda mais para os chamados “grupos de minorias”, que não são nem mesmo a minoria. Não cultuando a igualdade entre os cidadãos – outra figura fraca do direito – mas a real prática de justiça. No horizonte de uma promessa, a necessidade imperiosa de hoje é aquela do “é preciso”, da inclusão imperativa de um fazer acontecer o acontecimento. É preciso encerra, de modo paradoxal porque nada encerra, a abertura ao outro. É preciso implica uma desistência do sujeito, do indivíduo indivisível, do indivíduo concebido como o cerne do cidadão. O cidadão deveria ser lido como uma espécie de generalidade da divisibilidade infinita, contudo, ele é tido apenas como aquele que responde por sua individualidade diante e perante um Tribunal, às leis, ao poder instituído e às dinâmicas de repressão que ele mesmo aceita. A condição do indivíduo é ser calculado por aquilo que ele tem de especial, único e próprio. A incondição da justiça (e talvez da verdadeira cidadania) seria justo o oposto, uma incalculabilidade diante do que é preciso ser feito diante e para e por outro. É essa a guinada que, de modo amplo, poderia conter os direitos novos para uma justiça por vir. E isso talvez estivesse no horizonte do PT – do PT de seus militantes, claro, de sua cartilha, de sua história, de seu governo federal vitorioso. E isso nunca estará no horizonte de um PSDB, de um DEM, de um PMDB, de um PV etc.

Nossa vadiagem democrática, para usar uma expressão de Bush desconstruída por Derrida, talvez leve-nos àquilo que a democracia talvez não queira de forma consciente, mas que pratica no modo inconsequente. A aclamação meio ridícula pelo impeachment da presidenta – vindo dos meios mais estúpidos de uma falsa indignação, de uma suposta revolta (on line, alguns dizem inclusive) – representa o modo quase jocoso com que lidamos com assuntos sérios e como nos desviamos simplesmente dos problemas fundamentais do país. É mais sério pedir o impedimento do Poder Executivo do que, por exemplo: (1) combater os absurdos da Polícia Militar, com sua desfaçatez assassina e com os modos mais cruéis do extermínio que vem ocorrendo no Brasil; (2) responsabilizar o Estado de São Paulo por uma total falta de planejamento hídrico e florestal, por seus usos abusivos de recursos naturais; (3) discutir de modo sério as questões de abusos morais e sexuais e a violência doméstica cometidas contra mulheres; (4) compreender e nos esforçar verdadeiramente para o combate à fome e miséria; (5) combater cotidianamente essa falsa moral anti-corrupção, uma vez que no mais das vezes os maiores corruptos estão bem diante de nossos olhos, nas relações de convivência, de trabalho, de troca de capitais, no velho “jeito” que se dá nas coisas sempre para tomar ou tirar vantagem; (6) montar uma verdadeira política de assentamento e distribuição de terras, para produção agrícola que não dependa necessariamente dessa indústria do Agronegócio e, sobretudo, para a transformação cultural de assentados e trabalhadores; (7) resolver o problema de moradia que assola as principais cidades brasileiras; (8) desenvolver uma real política cultural em que cada centavo investido represente não aquilo que querem as Grandes Corporações da Indústria de Entretenimento, mas a Cultura Nacional de um modo justo; (9) garantir educação pública e de qualidade gratuitamente para todos os brasileiros em todos os níveis; (10) produzir tecnologia e saber que se converta em benefício social para o país; (11) uma reforma política que proíba de fato toda campanha suja? E poderia continuar listando ações calculáveis para uma democracia mais plena, para um Estado menos violento.

O Estado democrático é um estado formado pela voz do povo e no regime representativo que nos encontramos essa voz é transferida. Essa transferência é quase sempre problemática, tendo em vista que os representantes são oligarquicamente formados, que eles gostam de exercer o poder do Estado como um estado-de-exceção. No entanto, a voz pode ser retomada com a participação pública no debate. Retomar a voz não significa simplesmente pedir o impedimento da presidência, por interesses cada vez mais espúrios, mas fazer com que o Legislativo aja de acordo com nossa voz... Hoje, dia 09 de fevereiro, ouvimos o presidente da câmara dizer que Aborto, Direitos dos Homossexuais e Regulação da Mídia não serão votados no período de sua condução da casa. Ninguém esperava menos, ninguém esperava nada. Mas dizê-lo é dizer o que a autoimunidade democrática produz: poder autoritário sobre assuntos que sempre são tabus e necessários para que se mantenham silenciados. Dizer não a essas votações é dizer não a uma agenda que busca não apenas o direito constituído, mas a justiça. Fica a pergunta mais relevante no momento – que nada tem a ver com a postura de Dilma: Qual é a agenda do país? Se é aquela das bancadas ultraconservadoras do Congresso Nacional, então não vivemos mais uma democracia, a estamos enterrando. Não é a pá de cal, como noticiada pelos meios de comunicação como sendo de José Dirceu, sobre o PT, mas é a pá de cal sobre nós todos. Criminalizar o Partido é talvez mais fácil do que assumir a responsabilidade pela morte de cada homossexual que será agredido e morto por esse tipo de “política”, por cada mulher pobre que terá de fazer um aborto clandestino por essa forma de “moral”, por cada calúnia irresponsável dita e cultuada como séria por essa apresentação do “correto”, do “democrático”, do “livre”.

Vivemos hoje um Estado de Direito Democrático que criou para si um terrorismo autoimune. Destrutivo e vadio, o estado das coisas tem se tornado aquele da moral superfaturada por meios de comunicação que não se preocupam com o mínimo de informação. Jornais, canais, sites, revistas que já deviam estar extintas não por aquilo que elas fazem simplesmente, mas PORQUE elas o fazem. Ser leitor-espectador disso e ainda querer ser intelectualizado é uma contradição de termos. O pior, nessa autoimunidade, é que o próprio Partido dos Trabalhadores começa a temer, a própria presidenta, ao que parece, irá ceder à mídia. Destrutivo por ser massacrante e repetitivo. Parcimonioso e paquidérmico, o modo com que essas informações bombardeiam nossas timelines, nossos tuítes, nossa cabeça é porco e falastrão, como o bom corrupto (aparentemente bom, belo, homem, branco, bem-sucedido, Eduardos Cunhas, aqueles que muitas vezes se querem reconhecer nele...). Nesse terror – talvez o maior de todos seja o estranho “Jornal da Globo” – tudo o que eles mais querem é uma queda monumental de cada direito conquistado, de cada gesto em direção ao outro. Sem motivo? Não, a manutenção de certo controle social é fundamental para o bom andamento dos negócios de vendas. Quando uma rede de TV como essa é obrigada a dar a notícia da vitória de Dilma, o repórter engasga e o povo aos gritos durante o discurso após o resultado é de libertação sobre toda enganação que vem sofrendo cotidianamente. Como essa emissora não poderia então fazer senão o terror? Degolem essa mulher porque ela não pode representar algo maior do que o padrão “William Bonner”, do que o modo do gerentão de edição que ele é (aliás, a imagem de Dilma como gerentona é ou não é a mais odiada pela mídia e, agora, por uma parcela da população?). O ponto é: em um Estado de Direito Democrático o que não há é justamente a democracia em ação, há o direito em se manter democrático de acordo com determinados padrões que não são os de Dilma (quero dizer, mulher, bem-sucedida, militante, ex-presa política, filiada a um Partido com pretensões de esquerda, autônoma, mãe de uma filha, divorciada, gerente do país e do Governo, autoritária). Essa mulher é quem estão caçando para que possamos nos manter sob a égide do país entregue senão a uma corrupção infindável e impronunciada nas cortes (que ainda ali se exerce um poder absolutista abscôndito) a um entreguismo internacional e liberal da forma mais escancarada e imoral.

A autoimunidade é também uma autoimundice do mundo. Necessidade em se criar um mundo e dar a ele um sentido, vivemos o mundo em negativo, o i-mundo do mundo. É imundo tudo o que é próprio ao mundo, tudo o que dele é mais limpo, mais aparentemente límpido e correto. Essa imundice é o espectro de uma democracia que poderia vir a ser. Democracia em que é imundo calar-se. Democracia que pede atenção a cada desvio de conduta sob o pretexto de correção e aperfeiçoamento da vivência democrática, como se houvesse uma única e possível vivência democrática que não fosse um conviver. Dizem de tudo do já mitificado Lula (da doença aos xingamentos que perduram por mais de 30 anos!!!). Dizem de tudo do silêncio de Dilma. O silêncio de Dilma representa também ele nosso silêncio. Seu silêncio deu a ela uma queda de popularidade – como se isso representasse um aval para o impedimento, como se uma pesquisa de popularidade fizesse com que se pudesse simplesmente abrir uma longa discussão na “agenda” do Congresso sobre esse assunto. O silêncio de Dilma é a sua aporia. Agamêmnon, o chefe do aqueus na Guerra de Troia, teve de viver uma aporia para zarpar: matar em sacrifício sua filha Ifigênia para acalmar os deuses (sobretudo Ártemis e sua corça sagrada) ou não matá-la e ser morto para que os aqueus pudessem eles mesmos (em sua sede quase “democrática”) matá-la para acalmar os deuses. Não que Agamêmnon, apesar de toda prepotência narrada, o tenha feito para se salvar, para salvar a própria pele na pele de Ifigênia. Ele o faz como responsabilidade diante do Estado, diante das crenças. Ele a mata como Abraão teria matado Isaac se não fosse a mão do anjo. Ele a mata respondendo a uma responsabilidade radical, ao outro totalmente outro. Ele o faz para zarpar. O restante dos motivos a mim são espúrios: guerra, riqueza, glória imperecível. O silêncio de Dilma, que deve ser rompido daqui a pouco, representa o infigurável da democracia: ela não tem o direito (democrático) de se calar. O que esperar? Que simplesmente ela rompa o silêncio, como o fez quando das manifestações de junho de 2013 e ninguém a ouviu? Que exerça de modo programático uma gestão carismática para responder à grande mídia? A resposta que está no horizonte desse imundo mundo é que seu silêncio reflita – é bom o silêncio para a reflexão, para a meditação – novas e poderosas ações sociais, de investimentos públicos contínuos nas áreas que alteram verdadeiramente a vida das pessoas, de aproximação com a militância e, com isso, a forçar que a “agenda” do Congresso não seja aquela conservadora de Eduardo Cunha. O silêncio de Dilma é uma aporia porque ela falará por nós ou esse “nós” (em que não estou incluído) quererá falar por ela.


Brasília, 09 de fevereiro de 2015.