terça-feira, junho 30, 2009

ave, linguagem

“o idioma é a única porta para o infinito,
mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinza”
(joão guimarães rosa)

o nome habita as margens
como a palavra, seca, se
molha em molhos de flor
e uva caída nos panos
da renda escura de tempo –

minha língua, espelho
obscuro, martiriza os seixos
em cruz, fundamento e
abismo da memória, da
madeira do eixo, aos chifres

retorcidos de poeira e
caminho, odores das velas
inconclusas, em que a paixão
fez ato – do bagre andorinhando
seus assobios e arrulhos

despovoados: aqui o homem
solfeja, uma prece à virgem,
um soluço lutuoso, são benedito,
colhendo-se buriti, à semente,
abaixo do manto, arabesco,
as flores de trigo, da fala
que ainda é morada e demora,
gris dos picos, vindima
as portas – palavra vozerio
que cala, geme e oculta.

segunda-feira, junho 29, 2009

sinete


vibra espelho nítido e cego,
violenta mudez de timbre,
voz que flama a foz de água –
voltas sonolentas à forma:

evidência surda de abstrato,
sela a imagem e a memória
do oblíquo pesar de fruta,
sensível crosta, cuidado.

o turvo sinal modulando
o dia, erva buliça, barulha
o oco que ouço da coisa:
olvido grafado, da perda.

arkhé, presença


palavra, mar de traços,
prende-se agora ao inútil
pensar saliva de onde
a lua toda é ostra e pedra.

o mistério lúcido de corrente,
o rio apenas livre, de fato,
enquanto nasce esse gosto
de nada, a escrita.

escuro escuta esse instante
em que o tempo é olhar
e o álacre agre da cera
é possível de nunca, sendo.

inexiste solidão, essa manhã,
jogo de água e frescura de ar,
o próprio do silêncio calcado
no fosco, na fome de pulso.

sexta-feira, junho 26, 2009

nênia: this is it


vocês sabem que esse blog não se abre muito à prosa. muito à citação não-modificada. mas hoje haverá uma prosa, copiada e colada. o artigo do caetano sobre a morte de michael jackson. a afeição pela música popular me faz colocar esse texto aqui (e, em duplo sentido, me é caro! e, de fato, faz ver que não concordo mesmo com theodor w. adorno). logo abaixo também insiro uma nênia, essa minha, para o falecimento do pop ou de grande parte dele. seguem os textos:


O anjo e o demônio da indústria cultural
Por Caetano Veloso

A notícia da morte de Michael Jackson foi um grande abalo. Cheguei ao Teatro do Sesi de Porto Alegre e ao ser informado pensei imediatamente em meus filhos Zeca e Tom. Logo Daniel Jobim me veio à mente. Ele é conhecedor e devoto de Michael desde a infância. Moreno, meu filho mais velho, que é amigo de Daniel, também dedicou afeto intenso à figura desse gênio do nosso tempo. Mas são meus filhos menores que hoje se sentem mais atraídos por seu estilo.
Como todo mundo, acompanhei Michael desde que ele era pequeno. Como todo mundo, fiquei siderado pelo cantor e dançarino de "Off the Wall" e "Thriller". Como todo mundo, fiquei entre fascinado, enojado e apreensivo diante das transformações físicas por que ele passou. O que quer que tenha havido entre ele e aqueles meninos cujos pais o processaram, acho-o moralmente superior a esses pais.
Michael é o anjo e o demônio da indústria cultural. A serpente do seu paraíso e seu mártir purificador. Os talentos artísticos extraordinários frequentemente coincidem com vidas torturadas e enigmáticas. Michael era um desses talentos imensos. Dançando "Billie Jean" na festa da Motown ele foi sim tão grande quanto Fred Astaire: comentava o Travolta de Saturday Night Fever e o Bob Fosse do Pequeno Príncipe (este, uma influência fortíssima e evidente, que nunca vi mencionada). Vou entrar agora no palco pensando em Tom, Zeca, Moreno e Daniel - e, com um nó na garganta, no sentido da nossa atividade. Ele a representava em sua totalidade, fulgurantemente, tragicamente, divinamente.

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nênia: this is it

passo à lua, mais leve,
lá onde o nunca cresce,
lá onde a mistura já cai:
estranho odor da infância,
esse, ainda permanente,
de luvas e luzes, da pele
e dor – tida – acossada
e respirando, dança.

quarta-feira, junho 24, 2009

elegia (partindo de duíno)

(…) Vor dir
hat ers geliebt, denn, da du ihn trugst schon,
war es im Wasser gelöst, das den Keimendenleicht macht.
(Die Dritte Elegie, Rainer Maria Rilke)
[Antes de ti
ele o amou, pois quando o trazias, estava dissolvido
na água que torna mais leve a semente.]

torce ao vazio calmo
sob as águas, a vista
do castelo, sobre águas,
esse lugar grave, bosque
nacarado de lamento,
em que atravessas o som
duro da hora e do luto –
ferem os passos, a prumo,
do consolo das sementes,
ao caule impassível de flama.

arquejo, a sós, velho nauta,
serena cantata de outros
olhos, cinza ouvindo, às
margens, já nascido e
estampado o selo do canto.

o que à noite ri, brando
pesadelo, de mouriscas
visões, circu-

lares, o rosto álacre, pomo
infindo de vergéis

em rastro, deixado, de tempo

sexta-feira, junho 19, 2009

uma ária: evangelho e paixão segundo são mateus (em pasolini e bach)


“seht die geduld.” (j. s. bach)

“o cristo de pasolini é um estigma contra a alienação: alienação é a piedade, a complacência, a hipocrisia, o tabu sexual, o servilismo, todos comportamentos que caracterizam o homem subdesenvolvido, ou melhor, o homem colonizado” (glauber rocha)





e primeiro parte o ir de eiras,
ponte vasta aos deserto e pó,
condenados, o ouvido e olho,
freme ainda friúme de friso
à bizâncio tornada, tapando-se
a luz dos barcos e o tremor
do sol: colônia de abelha,
espada furiosa, fronte ainda
cálida – duo cuore – bárbaro
barrabás. hora de árias, hoje,
à tez corrompida em azul,
estria ou rastro: wenn ich
einmal soll scheiden...
silente, às vésperas dos
olhos velhos de maria, de-
compondo-se corpo e ouro,
enquanto ares renascem –
velozes frente à câmera,
clarobtusa: toma, por isso,
essa língua opaca, conver-
tida em melodia, reais
frutos. dutos todos doces
movem-se, arfando olhos
e óleos, lépidos, presto
paradoxo: tais selos.

quinta-feira, junho 18, 2009

pound

will people accept them?
(ie these songs).
as a timorous wench from a centaur
(or a centurion),
already they flee, howling in terror.

ezra pound

imago devastada
às canzoni de arnaut
em tuas mãos ideo-
gráficas
ainda soluçam
lampejos – ékdemos
da beleza.
risco tenso, e noite,
à sombra
de fênix, limpando
calcanhares,
por circum-
navegações
de teus olhos,
postos à luz
pálida, à meia-
terra, tombando-se
ao silêncio:
romã sob
árvore do
vazio.

kulchur

amara a letra
tomba ao herdeiro –
trono moldado
de pedra-torre –
posse daquilo
que contemplo,
habitando:
moleiro ante
pernas de rocin-
ante –
vórtice, teus.

terça-feira, junho 16, 2009

BLOOMSDAY


bloomsday (g): mesmo marilyn

o vento despeja
pélagos da ciranda –
cor-de-vinho-e-amarelo –
tange ainda uma foliegens

à cama relva hercúlea,
levanta piano a canção
de roupas ao cheiro de
marelimos e vacios.

douro os capelos fuzilados
de penélope sobranceira –
rescorrescorre a noite
escronescrita.

assim aos saltos de sim,
sinner faz, mesmo ainda,
barbiturva hora: entre
pés e silábios, pele cála-
mo.

segunda-feira, junho 15, 2009

bloomsday (f): n. 7 eccles street

entre rins e mim,
as falas doutro o-
dor, as cartas em
letras sobescritas,
dão-se os olhos à
lenta voragem da
errância, por folhas,
ainda devastadas,
οἶκος, reverberam
os silêncios de pele
e músculos: atrás
de um sim, as formas
daquela flor, desviada,
em nuvens e atos,
cobertos de carmim.

domingo, junho 14, 2009

bloomsday (e): ulysses / leopold bloom / james joyce / humphrey chimpden earwicker


umbigo elíseo ao liso si de ser.

lento vapor errante, à
boca, a voz varre o escrito.

já agora os tácteis sabores –
júbilo macerado, ékdemos.

homem, aqui verbete silabado,
cheiro de sons e falas noturnas,
eis ainda o corpo desfeito, sorvido.

bloomsday (d): anna livia plurabelle


evinhas polipanacquas tui lherias de gestapó aos milumjorromãs dalhures ejoybilos nos reverses de moites e diásporos à derribada de nubessência e nauvorada de sinsousinos mascanacarado de brialhos fiados em piossononolentes de cohibas caraíba poundemônios de trigres ça e zapata teu rioolorio velhacochi xingando-se às mararagens beijentes reviradas fallhem um sheiro já sem sal uma isolada ventura plurabillidades de não-na nanã límesculpida aos berruas à la grandville de uma foiexksàparte eça tua laminosa paularva pantepé afeita foligem de galosanãos cratilentos recubrentes font-o’conne ele ainda járrando ólheos dessolviventes riversersi o pensadelo linguifero pulurento antiverbal

bloomsday (c): nora barnacle


dessas-mãos-lentas-
pulverizam-se-os-dias-
dos-versos-dos-tempos-
do-sentido-avesso-tenso-
averno-reverso-da-ordem-
sentida-nos-olhos-inflados-
no-ponto-de-luz-e-cio-das-pét-
alas-dos-cravos-jorrados-em-sons-
em-amoras-deixadas-pela-vida-em-
poros-e-pêlos-de-nuvens-da-dublin-
escritural-de-provérbios-e-pesadelos-
a-cantar-nos-desertos-e-nós-da-américa-
bowling-blow-up-the-green-garden-the-amores.

bloomsday (b): molly bloom


enfeites à mão de seu sexo
antigo, às luvas delicadas,
velume de palavras, na noite
ou sonho.

feito isso, os membros
conversam, dáctilos de
açafrão e maluco chapeleiro,
dorme.

em fêmea foragem, ver-te
vertigem, pálpebra calada,
de branco ao rubro, miasmas
incônscios.

ferida de cios, voz entre
aindas e mais, dizendo
ao tecido, conversa de si –
o sono.

e freme a ida, errante
narrável, das heras de tempo,
do nácar de sílaba,
devaneia.

florescem em pedras, os olhos,
ouvidos: tendões submersos,
dias e noite, manto fugaz
de sejo.

entre fontes de verbos,
gemem as horas, em gilbratar
todo homem é ainda um
escrito.

bloomsday (a): penélope

sobrepas-
seiam os
patos à tenda
movência de
pluma movida
de penas gor-
jeiam as súpli-
cas de pêlos
mouriscas e frê-
mitos do tanto
esperar conluios
de camas às ca-
pas de peplos
do paço ci-
preste e leito
olival os versos
percorrem pens-
ativa fronte
de outro debo-
che do tempo
e do mar ainda
à trama o fio e
agulha o ardil
já sem falo sem
hermes moradas
do tédio das mar-
cas do corpo à não-
morte despreza
para ter-te nos
olhos constância
de erros erronia
de néscios observas
o mar salino rubri-
fervente que anuncia
ainda o rio fêmeo
a dar-se
de dia e de dor mim
de mesmo ao convívio
de lívias pluralidades,
moles florescentes
blocos e amplitude
das mãos tecem
palavras de ainda
um hóspede a soar
cicatrizes

sábado, junho 13, 2009

novas flores, para a maria


o que deixas de teus olhos,
um regato para o colo, leda,
corpo e pernas soando, voz
rasa, quase-fala.

em um só som de margaridas,
pões-te em querer bem e bem
se quer, saindo-te, topas o
mundo, fixos emoldurados.

douras a cúpula, de súbito
deslumbre, do vasto domo,
em que já corres – imago
ventura – por mais hortas;

falanges lentas das naus
para esse susto, escuta:
sustém firme tuas asas, don-
de pairas, e move-te além do
pássaro, pois teus olhos são
fruto – ao que brota, semente
– e ainda plumas, sem olvido,
mancham tuas páginas.

segunda-feira, junho 08, 2009

luz sob luz


arde o mar, saindo-se,
à luz camurça de pêlos
ocres e leves: onda de
claridade.

ardem sombras à luz
do muro caiado, entre
frestas, entre tempos e
voz.

arde: o fumo tético, do
mar, às vagas de óleo,
e luz queimando, corpos-
flamas.

quase epimeteu: um πίθος


ao ferro vero pavor do dia
caem-se palmas de tempo,
passando, persabidas de
ficção e morada úmida nas
sombras de sim e sinos,
conluio de esperas e nês-
peras galgando o impossível.

sexta-feira, junho 05, 2009

chanson réaliste (iv): fréhel

folhas deixadas, fumegadas,
entre o estar e o ir-se, de verbo
e sôfrego frescor de mar distante
e rio à porta sem porto, sem amora.
borrando o caos, seus cais camuflam
o tecido roto de rosto e rumor ébrio,
calado, que livra o peso, molda
o corpo ao próximo que entra, tenro,
dizendo palavras marítimas, molduras
silenciosas, enquanto ainda cantas,
só, dans le faubourg, à dor que doura,
sem espera, respiro, no
t e m p o.

chanson réaliste (iii): damia

s’en va: eco de voz à la java
e, nostalgia tornando de outro
a olhos que se deixam, se perdem,
frente à noite perigo, de ruas
e ladeiras, instam um som
de corpo: coros e bailes nas
casas, de um voyou que se
vai, no canto, indo-se.

chanson réaliste (ii): berthe sylva

tece o negro-gris da fumaça
emprenhada de câmara a cama,
esse fardo, mais leve, mais
denso. pernas ao ar, lentas
e sóbrias à voz ferida e silente,
enquanto a boca ainda ferve:
infantes infâmias corroem
aves desérticas, caminho de
mel e odes, de verbo negro
nefando, em que se testam
noturnos e abismos à voz:
u n e p l a i n t e.

chanson réaliste (i): édith piaf

passo avante, monumento
de rua a rua acende o corpo
de asas e palavras: hino.
bordas às portas, perto, à cor
aos braços, ranços de perna:
un coin de la rue, un coup
sur la nuit, môme bruyante
.
em cena, à garganta, sangra
ainda, despindo-se dama e
vida a vi, dádiva: seca, longa.
campanários à la ville, e o ar
se indo pelos olhos: tombos
ao dia-noite, tempo à máscara
cede à sede de tempo e mor-
fina anda de engenho e en-
gendra esses abraços no-
turnos que tornam e retornam
à multidão de som a som,
descendo.

terça-feira, junho 02, 2009

caminho de heidegger (3)

“leben ist tod, und tod ist auch leben.”
(friedrich hölderlin)


à casa torna o pai reencontrado,
ainda sentado, os olhos contam
as lendas, dias da boca tolhida,
ao mesmo, idêntico pesar, de quem
a via ainda de visão, à derme tolda
angústia de rastros, fornalha às
águas – fonte e poço – de poder
antes vontade, sem tempo, de chuva
anáguas da verdade, redescobrem

martírios, morteiros – feros ferros da
hélade, da hégira – couros e danças.

caminho de heidegger (2)

“questionar é a piedade do pensamento”
(martin heidegger)


pensos sobre a ferida branca
os olhos revirados, prévios,
entre o acima e o abaixo –
terra em que habitam, pântano,
funchos e dançantes à pedra.
cobre, sobre si, o corpo
ainda virgem, ainda tempo.
à vida tornam, caminho moldado,
os rastros da idéia, prévia,
errados, errância do sem
ter, sendo. desdobra a tez
do mastro – plicare – nenhum
impulso: perde-se a língua,
enquanto
os mortos vociferam
entre as árvores, os bosques.