segunda-feira, agosto 06, 2007

Literatura e a presença

É preciso, antes, entrever que a palavra literária é aquela que acaba de nascer. O presente moldado da escrita em que se ausenta a voz, o signo, faz emergir necessárias horas entre a treva – da letra impressa sobre o papel branco – e o silêncio, sibilante, das faces – disfarçadas – da linguagem imaginativa.
A literatura se faz sobretudo no momento em que se pode parar o dia, pois o texto, em estado poético, faz-se gravar no espaço e no tempo condicionado do salto súbito. O sujeito que a fabrica – lendo-a ou escrevendo-a – é antes aquele que optou pela ausência farta da imaginação: mundo real é mimetizado em busca de uma língua pura (reine Sprache) que revela o ser primeiro, a língua nominal de Adão. A literatura, assim, é antes recusa. Uma re-invenção do passado e do presente, uma re-visão do homem em sua transitoriedade.
O extremado século XX nos doou esta visão do homem temporal em duas figuras centrais: Freud e Heidegger. O sujeito moderno é cindido pela certeza do ‘para-morte’. A literatura torna-se, para concordar com Foucault, um “murmúrio sem fim”. Ruidosamente o texto segue se perfazendo em uma plurivocidade de “harmônicos” que busca pôr um novo véu sobre a fala do homem mecanizado, pragmático, rotineiro. O texto traz o estranho mais próximo, faz estranhar-se com o aquilo familiar, ou ainda, numa palavra freudiana, Unheimliche. Os sons das palavras – mudas por estarem fixadas como texto – desvelam a carência do ser, justo naquele ponto que falha a linguagem. Stefan George assim compreendeu, sensitivamente.
O texto literário – como mensagem verbal artística – compõe-se de uma simetria entre expressão e conteúdo. A chamada queda do eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático da linguagem reflete os mecanismos de significação literária. A produção de multissignificação só é possível na medida em que se altera a grade sintática (a partir dos mecanismos de deslocamento de significantes) ao mesmo tempo em que a semântica (pelos processos de condensação significativa). Estes processos de alteração são geradores de linguagem nova (novidade estética). A literatura deve ser capaz de fornecer informação sem comunicação; informação por sensação da forma. Peirce: “O poeta faz linguagem para generalizar e regenerar sentimentos”.
A experiência literária é aquela que a morte pode marcar, inscrever. A certeza temporal das possibilidades hermenêuticas é confronto oximoresco com a imortalidade, com a atemporalidade do texto. A experiência literária então é uma questão do tempo produzindo diferenças; conduzindo o aspecto póstumo da escritura através do tempo (entendido enquanto mortalidade) e do espaço (percebido como distância ou intervalo da letra e da leitura).
A metáfora desse espaçamento temporal é evidentemente aquela que pode pretender a visão do livro como objeto da memória: Dante Alighieri escreve, em Vita nova, “em algum lugar do livro da minha memória”. O livro memorável intenta ao homem a reflexão do aspecto primevo, do conluio inicial entre caos e cosmos. Mallarmé o intentou – a partir dos mistérios das letras e da música – chamando-o ‘O Livro’, no qual todas as leituras fossem feitas, eternamente (em que há inclusive cálculos, diagramas, poucas palavras, abreviações, indicações de tom de voz, preço, vida média do francês finissecular). Os rastros de memória dirigindo (ou ‘digerindo’) a realidade da imagem da presença, eis um princípio basilar da linguagem literária.
A transparência ambígua do texto literário é antes uma pulsão para a morte, sublevação da imago. Basta à linguagem seu perpassar de passos, muito além da vileza de vida, a literatura encarna o exílio. O poeta faz do texto o algo translúcido, aquilo que falta ao cotidiano esmagado. O poema é, acima de tudo, um acontecimento trevoso em perigo. O relampejar deste perigo – que para Benjamin é a reminiscência histórica – é, poeticamente, a metamorfose da linguagem para encarar – mascaradamente – o abismo, além da fonte morosa da tradição. Abismado, o signo se pergunta o porquê das coisas: por que os frisos?
A escritura atira o homem no des-fundado, no abismo (averno tenso) em que Orfeu perde Eurídice. Esta, mero traço invisível do retrato estipulado pelas letras (e cordas) do poeta inicial. Esta ruína – a perda – é o extremo da experimentação, ponto impossível, em que além-túmulo, a morte ainda não sentida é realizada. Orfeu não consegue olhar o ponto nebuloso da finitude, pois o mesmo é origem concreta e além das palavras. Cantar, pela lira, é tentativa desta origem, mas não apaga tudo, resta a beleza. Apartados, os amantes são a própria existência literária enquanto mito: eterno desdobrar-se de significantes em queda na qual a aparição do existo (latino) torna a ser um ‘elevar-se para fora de’. A experiência do fora da ausência é, no texto literário, presença.