Piero Eyben
Nos últimos dias,
aliás, desde as eleições presidenciais que tivemos no ano passado, reina entre
os brasileiros midiatizados a sensação, colocada pelos “honestíssimos”
jornalistas da Folha de SP, da Globo, da Editora Abril, do UOL, do PSDB e por
aí vai, a onda desesperada para a retirada da Presidente da República e a
cobrança sobre seus eleitores de uma postura (contrária, sempre) diante de
escândalos igualmente midiatizados e bombasticamente preparados. As acusações
são de todo nível. As cobranças ainda piores. Até o momento, no entanto, nada
que atinja a presidenta nada que atinja o processo eleitoral nada que atinja a
escolha da maioria dos brasileiros que votaram na realidade transformada do
país. O nível dessa transformação pode e deve ser questionado, claro. Aliás, é
de fundamental importância questioná-lo uma vez que a desigualdade ainda
permanece, o anseio por mais e novos direitos nunca foram tão urgentes, ainda
há fome e miséria no país, o índice “governabilidade” ainda é uma prática
desastrosa no seio do governo (vide Kátia Abreu, Joaquim Levy, George Hilton, e
ainda, a derrota na Câmara dos Deputados para um PMDB cada vez mais retrógado,
dos mais obscuros recônditos da política suja e preconceituosa, personificado
pelo agora Presidente da Casa). O índice de transformação também deve ser
pensado de modo positivo dado o avanço em diferentes áreas em que as políticas
sociais puderam fazer diferença, com todos os programas de Assistência Social e
Distribuição de Renda, na geração de Empregos (que, aliás, é um dos índices
aporéticos do Governo que tem a menor taxa de desemprego da história e ainda
sim é apontado como em estado tendente à recessão, com a necessidade de medidas
impopulares e cortes criados por essa tal governabilidade que tanto maltratada
a ideologia de formação de um Estado com necessidades evidentes), na
consolidação dos processos educacionais (que ainda não atingiram os números
esperados, mas que o nível de investimento auxiliou nesses 12 anos uma
transformação em curso, na formação docente, na distribuição de vagas nas
Instituições de Ensino Federais, na procura por diversidade sócio-étnico-racial
para uma esperada reviravolta nos saberes praticados por aqui).
Até
hoje estive, como muitos eleitores de Dilma, em silêncio não porque tenha me
arrependido ou me envergonhado de meu voto, como querem muitos. Estive calado
por dois motivos: (1) não tenho tempo MESMO para essas picuinhas criadas por
factoides de jornalecos ou de “políticos” apolíticos; (2) deixar que o barco
siga o seu curso na história. Bem, penso que a hora não permite mais
simplesmente se manter calado. O silêncio guarda aquilo que é a própria
democracia – naquilo inclusive que ela tem de mais doentio: sua autodestruição.
O direito democrático é um direito literário, como dizia Derrida, de tudo dizer
e de nada dizer. Ali onde a possibilidade de calar-se é ainda uma possibilidade
é que se instala o perigo do silêncio, do silenciamento, da opressão, da
calúnia também. O poder democrático é um poder SEM, um poder negativo em que a
não-restrição ao dizer implica a possibilidade de tudo dizer, inclusive o apoio
ao que não é democrático, inclusive apontar para uma não-democracia, para o não
reconhecimento da democracia. Como diz ainda Derrida, a democracia como tal
simplesmente é impossível, ela está sempre por vir. O que temos aí é uma
espécie de “democracia calculada”, de um espectro democrático que, no entanto,
politiza pouco e emburrece muito. Temos aí uma democracia do direito, uma
democracia de soberania e de poder que, no fundo, é sempre anti-democrática,
autoritária e que, como diz Walter Benjamin, representa apenas uma
“degenerescência do direito, da violência, da autoridade e do poder do
direito”. Não posso me privar de
frequentar o impossível da democracia, naquilo que ela tem de porvir, naquilo
que ela manifesta enquanto reenvio infinito à ideia de liberdade, aos
princípios de uma tomada de decisão na tentativa não violenta diante do outro –
de todo e qualquer outro.
O
princípio regulador do Estado democrático tem na voz do povo, instituída por
meio de eleições, no princípio representativo, portanto, sua força. Dupla
força: de um lado, a força do povo contra os abusos do estado, da soberania,
das classes; de outro, a força contrária, coercitiva, maledicente, imposta na
razão do mais forte, nas simbologias dos opressores. Dupla violência, duplo
direito. O sistema representativo mostra-se sempre limitado e limitador, sempre
ao lado de interesses imediatos e mediados por formas espúrias daquilo que se
costumou erroneamente chamar de política. Essa mediação nos é dada pelas fontes
de “saber” de massa, que exercem real poder violento de Estado, da forma que
sirva aos modos legados por grandes corporações, por 2 ou 3 % da população que
controla o dinheiro. Essa regulação do sentido do Estado é extremamente
perigosa e perversa, uma vez que, sob o pretexto de informar, vendem produtos.
E o produto à venda no momento – ao menos para aqueles que citei mais acima – é
a Petrobras. Importam pouco os dados e os vestígios que encontrará a Polícia
Federal, a imprensa já deu sua sentença, que será repetida por cada casa, nos
corredores dos supermercados, nos elevadores, nas conversas das “boas famílias
brasileiras”. Não interessa que a lista de políticos que receberam propina ou
se enriqueceram seja majoritariamente de partidos da OPOSIÇÃO ao Governo. Não
interessa que o modo de operação ridículo da petroleira tenha começado no
governo de Fernando Henrique Cardoso. Haverá sempre um diretor de “cinema” para
ser contratado e realizar uma minissérie – com um excelente texto, diga-se de
passagem – para simplesmente associar as formas de governo atuais com a de um
sociopata ficcional ou com os costumes da “família” sendo degradados por relações
que são consideradas demoníacas, assombrosas e dignas de punição moral. Eh, que
o século XIX ainda nem passou por aqui! Tudo isso sob a égide da autoridade
absoluta do direito democrático de tudo dizer, de tudo poder dizer, sem
responsabilização.
Desde
as eleições, venho defendendo que as formas de justiça social não deveriam mais
se basear no ideal de igualdade. Esse é um conceito fraco, inócuo e ingênuo
para dizer de uma real subversão que seria necessária para responder às
demandas contemporâneas, às trevas do contemporâneo. A guinada mais à esquerda
que o Partido dos Trabalhadores precisaria fazer talvez não consiga realizar.
Virar-se ainda mais para os chamados “grupos de minorias”, que não são nem
mesmo a minoria. Não cultuando a igualdade entre os cidadãos – outra figura
fraca do direito – mas a real prática de justiça. No horizonte de uma promessa,
a necessidade imperiosa de hoje é aquela do “é preciso”, da inclusão imperativa
de um fazer acontecer o acontecimento. É preciso encerra, de modo paradoxal
porque nada encerra, a abertura ao outro. É preciso implica uma desistência do
sujeito, do indivíduo indivisível, do indivíduo concebido como o cerne do
cidadão. O cidadão deveria ser lido como uma espécie de generalidade da
divisibilidade infinita, contudo, ele é tido apenas como aquele que responde
por sua individualidade diante e perante um Tribunal, às leis, ao poder
instituído e às dinâmicas de repressão que ele mesmo aceita. A condição do
indivíduo é ser calculado por aquilo que ele tem de especial, único e próprio.
A incondição da justiça (e talvez da verdadeira cidadania) seria justo o
oposto, uma incalculabilidade diante do que é preciso ser feito diante e para e
por outro. É essa a guinada que, de modo amplo, poderia conter os direitos novos
para uma justiça por vir. E isso talvez estivesse no horizonte do PT – do PT de
seus militantes, claro, de sua cartilha, de sua história, de seu governo
federal vitorioso. E isso nunca estará no horizonte de um PSDB, de um DEM, de
um PMDB, de um PV etc.
Nossa
vadiagem democrática, para usar uma expressão de Bush desconstruída por
Derrida, talvez leve-nos àquilo que a democracia talvez não queira de forma
consciente, mas que pratica no modo inconsequente. A aclamação meio ridícula
pelo impeachment da presidenta – vindo dos meios mais estúpidos de uma falsa
indignação, de uma suposta revolta (on line, alguns dizem inclusive) –
representa o modo quase jocoso com que lidamos com assuntos sérios e como nos
desviamos simplesmente dos problemas fundamentais do país. É mais sério pedir o
impedimento do Poder Executivo do que, por exemplo: (1) combater os absurdos da
Polícia Militar, com sua desfaçatez assassina e com os modos mais cruéis do
extermínio que vem ocorrendo no Brasil; (2) responsabilizar o Estado de São
Paulo por uma total falta de planejamento hídrico e florestal, por seus usos
abusivos de recursos naturais; (3) discutir de modo sério as questões de abusos
morais e sexuais e a violência doméstica cometidas contra mulheres; (4)
compreender e nos esforçar verdadeiramente para o combate à fome e miséria; (5)
combater cotidianamente essa falsa moral anti-corrupção, uma vez que no mais
das vezes os maiores corruptos estão bem diante de nossos olhos, nas relações
de convivência, de trabalho, de troca de capitais, no velho “jeito” que se dá
nas coisas sempre para tomar ou tirar vantagem; (6) montar uma verdadeira
política de assentamento e distribuição de terras, para produção agrícola que
não dependa necessariamente dessa indústria do Agronegócio e, sobretudo, para a
transformação cultural de assentados e trabalhadores; (7) resolver o problema
de moradia que assola as principais cidades brasileiras; (8) desenvolver uma
real política cultural em que cada centavo investido represente não aquilo que
querem as Grandes Corporações da Indústria de Entretenimento, mas a Cultura
Nacional de um modo justo; (9) garantir educação pública e de qualidade
gratuitamente para todos os brasileiros em todos os níveis; (10) produzir
tecnologia e saber que se converta em benefício social para o país; (11) uma
reforma política que proíba de fato toda campanha suja? E poderia continuar
listando ações calculáveis para uma democracia mais plena, para um Estado menos
violento.
O
Estado democrático é um estado formado pela voz do povo e no regime
representativo que nos encontramos essa voz é transferida. Essa transferência é
quase sempre problemática, tendo em vista que os representantes são
oligarquicamente formados, que eles gostam de exercer o poder do Estado como um
estado-de-exceção. No entanto, a voz pode ser retomada com a participação
pública no debate. Retomar a voz não significa simplesmente pedir o impedimento
da presidência, por interesses cada vez mais espúrios, mas fazer com que o
Legislativo aja de acordo com nossa voz... Hoje, dia 09 de fevereiro, ouvimos o
presidente da câmara dizer que Aborto, Direitos dos Homossexuais e Regulação da
Mídia não serão votados no período de sua condução da casa. Ninguém esperava
menos, ninguém esperava nada. Mas dizê-lo é dizer o que a autoimunidade
democrática produz: poder autoritário sobre assuntos que sempre são tabus e
necessários para que se mantenham silenciados. Dizer não a essas votações é
dizer não a uma agenda que busca não apenas o direito constituído, mas a
justiça. Fica a pergunta mais relevante no momento – que nada tem a ver com a
postura de Dilma: Qual é a agenda do país? Se é aquela das bancadas
ultraconservadoras do Congresso Nacional, então não vivemos mais uma
democracia, a estamos enterrando. Não é a pá de cal, como noticiada pelos meios
de comunicação como sendo de José Dirceu, sobre o PT, mas é a pá de cal sobre
nós todos. Criminalizar o Partido é talvez mais fácil do que assumir a
responsabilidade pela morte de cada homossexual que será agredido e morto por
esse tipo de “política”, por cada mulher pobre que terá de fazer um aborto
clandestino por essa forma de “moral”, por cada calúnia irresponsável dita e
cultuada como séria por essa apresentação do “correto”, do “democrático”, do
“livre”.
Vivemos
hoje um Estado de Direito Democrático que criou para si um terrorismo
autoimune. Destrutivo e vadio, o estado das coisas tem se tornado aquele da
moral superfaturada por meios de comunicação que não se preocupam com o mínimo
de informação. Jornais, canais, sites, revistas que já deviam estar extintas
não por aquilo que elas fazem simplesmente, mas PORQUE elas o fazem. Ser
leitor-espectador disso e ainda querer ser intelectualizado é uma contradição
de termos. O pior, nessa autoimunidade, é que o próprio Partido dos Trabalhadores
começa a temer, a própria presidenta, ao que parece, irá ceder à mídia.
Destrutivo por ser massacrante e repetitivo. Parcimonioso e paquidérmico, o
modo com que essas informações bombardeiam nossas timelines, nossos tuítes,
nossa cabeça é porco e falastrão, como o bom corrupto (aparentemente bom, belo,
homem, branco, bem-sucedido, Eduardos Cunhas, aqueles que muitas vezes se
querem reconhecer nele...). Nesse terror – talvez o maior de todos seja o
estranho “Jornal da Globo” – tudo o que eles mais querem é uma queda monumental
de cada direito conquistado, de cada gesto em direção ao outro. Sem motivo?
Não, a manutenção de certo controle social é fundamental para o bom andamento
dos negócios de vendas. Quando uma rede de TV como essa é obrigada a dar a notícia
da vitória de Dilma, o repórter engasga e o povo aos gritos durante o discurso
após o resultado é de libertação sobre toda enganação que vem sofrendo
cotidianamente. Como essa emissora não poderia então fazer senão o terror?
Degolem essa mulher porque ela não pode representar algo maior do que o padrão
“William Bonner”, do que o modo do gerentão de edição que ele é (aliás, a
imagem de Dilma como gerentona é ou não é a mais odiada pela mídia e, agora,
por uma parcela da população?). O ponto é: em um Estado de Direito Democrático
o que não há é justamente a democracia em ação, há o direito em se manter
democrático de acordo com determinados padrões que não são os de Dilma (quero
dizer, mulher, bem-sucedida, militante, ex-presa política, filiada a um Partido
com pretensões de esquerda, autônoma, mãe de uma filha, divorciada, gerente do
país e do Governo, autoritária). Essa mulher é quem estão caçando para que
possamos nos manter sob a égide do país entregue senão a uma corrupção
infindável e impronunciada nas cortes (que ainda ali se exerce um poder
absolutista abscôndito) a um entreguismo internacional e liberal da forma mais
escancarada e imoral.
A
autoimunidade é também uma autoimundice do mundo. Necessidade em se criar um
mundo e dar a ele um sentido, vivemos o mundo em negativo, o i-mundo do mundo.
É imundo tudo o que é próprio ao mundo, tudo o que dele é mais limpo, mais
aparentemente límpido e correto. Essa imundice é o espectro de uma democracia
que poderia vir a ser. Democracia em que é imundo calar-se. Democracia que pede
atenção a cada desvio de conduta sob o pretexto de correção e aperfeiçoamento
da vivência democrática, como se houvesse uma única e possível vivência
democrática que não fosse um conviver. Dizem de tudo do já mitificado Lula (da
doença aos xingamentos que perduram por mais de 30 anos!!!). Dizem de tudo do
silêncio de Dilma. O silêncio de Dilma representa também ele nosso silêncio.
Seu silêncio deu a ela uma queda de popularidade – como se isso representasse
um aval para o impedimento, como se uma pesquisa de popularidade fizesse com
que se pudesse simplesmente abrir uma longa discussão na “agenda” do Congresso
sobre esse assunto. O silêncio de Dilma é a sua aporia. Agamêmnon, o chefe do
aqueus na Guerra de Troia, teve de viver uma aporia para zarpar: matar em
sacrifício sua filha Ifigênia para acalmar os deuses (sobretudo Ártemis e sua
corça sagrada) ou não matá-la e ser morto para que os aqueus pudessem eles
mesmos (em sua sede quase “democrática”) matá-la para acalmar os
deuses. Não que Agamêmnon, apesar de toda prepotência narrada, o tenha feito
para se salvar, para salvar a própria pele na pele de Ifigênia. Ele o faz como
responsabilidade diante do Estado, diante das crenças. Ele a mata como Abraão
teria matado Isaac se não fosse a mão do anjo. Ele a mata respondendo a uma
responsabilidade radical, ao outro totalmente outro. Ele o faz para zarpar. O
restante dos motivos a mim são espúrios: guerra, riqueza, glória imperecível. O
silêncio de Dilma, que deve ser rompido daqui a pouco, representa o infigurável
da democracia: ela não tem o direito (democrático) de se calar. O que esperar?
Que simplesmente ela rompa o silêncio, como o fez quando das manifestações de
junho de 2013 e ninguém a ouviu? Que exerça de modo programático uma gestão
carismática para responder à grande mídia? A resposta que está no horizonte
desse imundo mundo é que seu silêncio reflita – é bom o silêncio para a
reflexão, para a meditação – novas e poderosas ações sociais, de investimentos
públicos contínuos nas áreas que alteram verdadeiramente a vida das pessoas, de
aproximação com a militância e, com isso, a forçar que a “agenda” do Congresso
não seja aquela conservadora de Eduardo Cunha. O silêncio de Dilma é uma aporia
porque ela falará por nós ou esse “nós” (em que não estou incluído) quererá
falar por ela.
Brasília,
09 de fevereiro de 2015.
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