Piero Eyben
Desde as eleições de 2014, estou ao lado
de proposições progressistas, à esquerda, que representa o governo do Partido
dos Trabalhadores. Nunca me furtei em me declarar explicitamente como favorável
à recondução de Dilma ao Planalto, nem às críticas necessárias ao modelo que
ela mesma implementou no começo ainda de seu primeiro mandato. Os mais próximos
a mim sabem que até mais ou menos o mês de agosto/setembro do ano passado,
estive em uma dimensão de crítica tremenda ao que Dilma fazia com o país
sobretudo na permissibilidade do Estado de Exceção, no tocante ao poder
militaresco, à forma com que, de modo um tanto irresponsável, tratou assuntos
de direitos humanos, o esquecimento dos indígenas e da continuidade da reforma
agrária no país. Tudo isso me angustiava muito e cheguei a dizer que não faria
campanha à presidência, se fosse Dilma a concorrer. Quando começaram-se as
especulações e o movimento da parcela mais reacionária da política brasileira,
pensei não haver outra solução senão me engajar completamente na campanha da
presidenta, o que se agravou imensamente com a morte do candidato que, por
certo, confirmaria sem muitos esforços em um provável 2o turno a
continuidade do projeto popular.
As eleições foram fortes em embates, em redes,
em comícios, em reuniões, em manifestações e passeatas para tentarmos reafirmar
a necessidade de continuidade de uma frente popular que, apesar de estar longe
dos ideais comunistas (bolivarianos, como muitos querem crer), está muitíssimo
preocupada com a distribuição de renda, com a ascensão de classes, com a
justiça social, com o emprego. O governo Dilma representa um governo
absolutamente moderado em termos de políticas de esquerda e, em largo espectro,
parece-me muito com aquilo que hoje representa grande parte dos que lá estavam
hoje. Para além, da questão histórica e canalha que existe na escolha da data
de 15 de março, os dois números das últimas manifestações representam os
partidos que estão no poder e que têm uma tendência complicada de engolir a se
equipararem, a se identificarem. Talvez pelo tamanho desproporcional que
tomaram, o 13 de Dilma e o 15 de Temer são, hoje, uma parcela que representa
um problema que está, como bem disse Safatle, na falência da nova república, no
fracasso do modelo de governabilidade.
Em Brasília, sempre estivemos em lados
opostos, os 15 e os 13. Sempre. O PMDB e o PT eram até a penúltima eleição
inimigos públicos. Azul e vermelho. Caprichoso e garantido. Custei muito a
aceitar empunhar uma bandeira com o vice do PMDB, acreditando que isso nos
levaria a uma situação como a que vemos hoje. Nessa luta, que em geral sempre
saímos derrotados nas urnas, havia sempre uma forma que não se reduzia, um modo
de operação que organizava o pensamento e a ação da militância para os momentos
decisórios, para podermos com uma moral bastante diferente daquela dos que hoje
foram às ruas mostrar que o caminho da inserção social era ainda o almejado.
Bem, Brasília politicamente é uma grande farsa. Falo, evidentemente, de
Brasília como parte da Federação e não como Capital da Nação. A farsa se monta
com interesses muito espúrios e com um ideal de castas e classes como em nenhum
lugar do mundo. Em sua divisão, Brasília é pensada como um acontecer para a
sociedade que não suporta ver mazelas, pobreza. O Plano Piloto não é apenas uma
ilha, é um poço. O medo da direita raivosa de Brasília tem a ver com esse poço,
com o medo de serem invadidos pelos bolsões de pobreza que rodeiam o centro. O
entorno do Distrito Federal é um dos lugares mais violentos do país, meio sem lei
nem dono, entre Goiás e o DF não há jurisdição. A taxa de assassinatos ali é a
segunda mais alta do país. Mas como disse, custei a erguer a bandeira porque
acredito que as bandeiras que guiam o PT ainda são bandeiras poderosas e que
podem transformar. O contrário ocorre com o PMDB, por seu caráter parcimonioso
e sempre indigesto de “fazer política”, de envolver-se ali onde tudo o que é
sujo está.
O Brasil de hoje tem muitos outros
problemas para além daquilo que essa marcha pró-impeachment solicita. A
derrubada da presidenta significa, agora mais claro do que nunca, apenas um
revanchismo golpista que pretende destituir a moral de quem penosamente
conseguiu minimamente distribuir renda, elevar a qualidade social, colocar no
cenário questões fundamentais de direitos, reverter o poder de consumo diante
do capitalismo internacional. A demanda por impedimento da presidenta vem dos
lugares mais abscônditos da sociedade de classes brasileira, aquela que é por
si escravocrata, imperialista, violenta e exclusivista. Vejam como tratam, por
exemplo, os outros casos de corrupção, como o HSBC, Furnas, SABESP, Metrô
paulista. É preciso um silêncio absurdo sobre eles ou a casa toda cai. Nossos
problemas de segurança pública, com números de guerra, é, evidentemente, um
problema muito maior. Nossa falta de ética cotidiana, nas relações de trabalho,
no modo como lidamos com o outro, é, sem dúvida, parte de uma corrupção também
silenciada e muito mais problemática do que Dilma nos representando ou não.
De duas semanas pra cá, tenho pensado em
como nossa presidenta procurou (e mesmo atiçou) essas manifestações contra ela.
Não serei enfadonho apontando o que todos os críticos do governo apontam.
Muitas delas verdadeiras, outras nem tanto, mas a grande mídia já as informou,
as redes sociais já as viralizaram. Para mim, há outros motivos, mais profundos
e ideológicos, na demanda por seu impedimento. Ela simplesmente em um governo
mexeu com estruturas que comandam o país há décadas e séculos. Passo a listar:
(1) instituiu uma Comissão Nacional da Verdade para pesquisar, rever, avaliar e
emitir parecer sobre os crimes cometidos por militares durante a Ditadura; (2)
mandou trocar em documentos oficiais a famosa ideia de uma “revolução de 64”
(“a gloriosa”) pela mais correta de Golpe Militar, isso tocando documentação do
Poder Executivo Federal; (3) manteve políticas de distribuição de renda
iniciadas por Lula, construindo assim uma continuidade efetiva entre ela e aquele
governo, considerado até pela grande mídia como o melhor que já houve; (4)
propõe o combate a corrupção de forma imparcial, dando liberdade de
investigação à Polícia Federal, sem engavetamentos; (5) propõe uma reforma
política (isso como solução primeira às demandas das manifestações de junho
2013, através de plebiscito e participação popular – o que, é preciso dizer,
não foi ouvido por ninguém!); (6) começa a falar em regulação e democratização
das mídias; (7) fala e propõe a taxação de grandes fortunas, para cumprir a
Constituição Federal; (8) torna crime contra a mulher hediondo; (9) propõe
punir e tipificar os crimes de homofobia; (10) distribui casas, fazendo cumprir
o direito à moradia; (11) investe em educação técnica e superior – embora com
esses cortes para o ano de 2015 – de modo sistemático e com vias a uma
transformação de longo prazo em nosso potencial formador, acadêmico e de
pesquisa técnico-científica; (12) decide que os royalties do pré-sal será todo
investido em educação e saúde, e não será vendido às empresas privadas.
No fundo, com todas essas razões, podemos
crer que o golpismo à brasileira é até mesmo brando. Quando se pensa em tanta
transformação histórica e ideológica, as classes dominantes em geral ficam
ainda mais raivosas, odientas mesmo. E, enquanto as mídias oligárquicas falam
de maior manifestação já existente no país, só posso pensar, como o pensou Derrida
sobre o “September 11” (que me vem a mente porque um dos cartazes do protesto
de hoje dizia literalmente: “obrigado PT pelo 11 de setembro”), que por mais
que esse seja um major event, ele só
o é porque representa a injunção daquilo que significa a própria dominação.
Empiricamente, numericamente, ele pode ser o maior evento da história de
manifestações no país – com certeza o mais midiatizado, de WhatsApp a TV –,
contudo ele é sobretudo construído para dar a “impressão” que de os afetos
estão todos jogados ali, que é um sentimento global, que as retóricas estão em
acordo e são comunicadas entre todos os cidadãos. O evento maior nunca poderia
ser um conjunto de populares, é preciso estar bem e usar filtro na foto. Como
diz Derrida, a impressão passa a ser a “própria coisa” para que ela se torne o
acontecimento em si. Trata-se de dispositivos comunicativos apenas. Dizer, como
faz o jornal, que essa manifestação é contra o governo, datá-la e colocar um
endereço como “Av. Paulista, Brasil” (é essa a manchete dessa noite no site
UOL), é, por certo, esquecer todos os trabalhadores que por ali passam e
transitam, é dizer que a Paulista é o modo que devemos nos portar. Como
contraponto a isso, ouço a Deputada Jandira Feghali (PCdoB) dizer do seu belo
projeto de uma mídia democrática em que as programações precisam ser regionais,
locais e independentes, para que possamos ver a cara do brasileiro, não o
sotaque paulistano ou carioca.
Diremos a partir de hoje que o problema da
inflação é de outra ordem. Trata-se da inflação de elementos acreditados (na
crença e no crédito). Quanto mais hiberbólico, maior o acontecimento. O que não
está na mira daqueles que hoje foram às manifestações é o grau de inapropriabilidade
de tudo o que ali ocorre. Como em muitos casos essa foi a primeira manifestação
que participaram em suas vidas, eles não sabem ainda como lidar com as inúmeras
contingências que dali saem. Cartazes com teor golpista, nazistas, fóbicos,
classistas, elitistas têm potencial destrutor sobre quaisquer reivindicações que
porventura venham a fazer. Para que esse seja considerado um evento maior, é
preciso pensar em como um acontecimento participa de algo que não podemos
compreender, que excede a compreensão, que ocorre, como diz Derrida, “ali onde
a apropriação fracassa sobre uma
fronteira”. Em larga medida, é por isso que dizemos – nós, à esquerda – que a
direita não pode fazer o que faz, que ela não tem moral para isso. A direita
não pensa que suas interpretações podem fracassar, que seu mundo pode estar às
avessas. Isso simplesmente porque, para eles, ele nunca esteve.
Sem horizonte, agora, o governo sai
fortalecido. Essa é minha conclusão de cara. Suásticas funcionaram uma vez, em
geral não podem funcionar novamente. No entanto, para que essa força e vitória
seja positiva ao governo é preciso muito trabalho e, sobretudo, uma tomada de
partido – a retomada do Partido dos Trabalhadores em seus moldes anteriores –
mais à esquerda, com propostas populares. Se vivemos uma crise econômica
mundial – embora os EUA cresçam assombrosamente (e esse é um dos motivos para a
alta do dólar) – precisamos de uma presidenta que nos faça crer, como fez Lula,
que não seremos devastados, que todas as conquistas sociais não serão
destruídas por um surto do capital especulativo. Que Dilma, a Dilma em que
votei e votaria novamente, faça de imediato a reforma política, a regulação da
mídia, a distribuição maciça de renda, que force ainda mais os investimentos em
educação e saúde, que o pré-sal não seja tocado por essa maquinação contra a
Petrobras, que o combate à corrupção seja implacável (mesmo nas pequeninas, do
cotidiano, de cada um), que se continue gerando emprego e renda.
Ao contrário do que será noticiado, esse
será um major event, não para os
golpistas, mas para o próprio governo que pode, agora, assumir as rédeas de seu
governo, para além de governabilidades. Trata-se de um acontecer de sentido
qualitativo que não permita simplesmente fazer a democracia atentar contra si
mesma, mas em uma marcha do tempo em que o 13 possa ainda, diante do passado,
manter aberto o porvir.
Brasília, 15 de março
de 2015.